segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Fim dos Deveres?

Não sou um Savonarola. Nem estou a defender a idéia de um "punitivismo" exagerado. Capaz de gerar em uma pessoa o temor quase neurótico de que um "grande irmão" o estaria a observar em cada esquina esperando a mínima falha. O menor deslize. O ínfimo tropeçar para que uma grei de policiais militares saltassem no desditoso, cobrissem-no com correntes, mordaças e desfilassem com o mesmo em praça pública, com o regozijo do dever cumprido. Insuflando temor semelhante aos enforcamentos em praças públicas, sob o ruflar tambores e palmas de adultos e crianças.

Foram graves e tristes os momentos em que o direito penal deixou de ser "ultima ratio". E se transformou em meio introdutório de normas morais nos habitantes de qualquer Estado organizado. A Democracia cobra de qualquer democracia um forte pedágio sobre o seu processo penal. Deve ele ser controlado, regrado, respeitar os mais básicos direitos fundamentais inscritos na Constituição, assim como os decorrentes. É mais difícil que ele atue. É algo que os sistemas de persecução penal devem se habituar: comprovar fundamentadamente o fato delituoso.

Há um limite, porém.

Direito é proporção. Equilíbrio entre vontades. Exercício saudável de liberdade. Não como um "cheque em branco" para fazer o que se queira. Longe disso. Liberdade não vive por si. Sempre e sempre reclama e pressupõe um âmbito de exercício. Uma finalidade, um "para quê". É como férias. Existe um conceito estranho sobre elas. No auge do trabalho, alguns a imaginam como um vácuo. Um período assemelhado ao projeto aguardado para o pós-vida. Um caminhar pelo céu enquanto anjos tocam harpa e saltar-se-ia de nuvem e nuvem, como se nada mais importasse. Hoje, ao contrário, é-se livre para fazer algo. Ser útil a si e ao próximo. Admitir que o conceito de liberdade é "fazer o que se quer, quando se quer e como se quer", independentemente do próximo é um conceito deveras perigoso a qualquer sociedade organizada.

Esse o ponto central dessa postagem de hoje.

No afã de nos livrarmos dos resquícios morais e políticos de um período histórico de de exceção há alguns anos, subvertemos o próprio conceito de responsabilidade moral. Hoje, máxime em épocas pós-modernas, não apenas aqui, mas em diversas nações, em especial européias, fala-se de uma teoria de "destruição do dever", ou numa sociedade "pós-moralista". Gilles Lipovetsky tem obras como "Felicidade Paradoxal", "A Era do Vazio", "Crepúsculo dos Deveres", assim como Alain Touraine, Antony Giddens e muitos outros, indicando um viés de "moralidade pulverizada". É como se o homem pós-moderno não mais tivesse compromisso com o próximo. A idéia de felicidade assumiu um tônus marcadamente individual. Trabalha-se no afã de chegar em casa, alugar filmes, pedir comidas por telefone, comunicar-se pela Internet, muitas vezes encetar relacionamentos, namoros e até casar com pessoas cujo rosto sequer é visto.

O Outro passou a representar uma limitação a nosso poder de disposição de nós mesmos, de nosso tempo e projetos. Ou, "O Inferno são os Outros", da obra de Sartre. O normal, aceitável, é realizar nossos projetos sem precisar da participação de terceiros. Em outros países, os serviço voluntário em instituições é aceito como indicativo de reforço moral da personalidade. Ou seja, nesses locais vale a pena ter uma causa, ou, simplesmente ajudar o próximo. No Brasil, é quase ofensivo a alguém chamar-lhe para isso. Muitas vezes, é dito que "temos muito a fazer", "quanto vou ganhar com isso...", "isso é coisa para riquinho triste com a vida..." . Pode ser um chavão, mas é como se o agir solitário, o sucesso obtido sem precisar do auxílio e amparo de terceiros fosse um indicativo de sucesso do exitoso.

Ao contextualizar a sociedade moderna, não é de surpreender o foco dado à ciência penal e ao sistema de persecução. É a aplicação da síndrome do "irmão mais velho." O mais novo "detesta" receber conselhos ou sugestões dele. Prefere realizar o seu próprio desejo, numa perspectiva imediata. Trazendo o raciocínio à conjuntura brasileira, a postura a ser assumida é a realização ilimitada da liberdade. O sistema jurídico passa a representar a "ocorrência desagradável", o freio indesejável da "criatividade inerente ao fazer humano". Simplificando: para muitos, seria uma coisa não esperada. E muito menos desejada. Os agentes de segurança são um mero empecilho... Seria "fora de moda" cumprir a lei...há algum tempo, viu-se que a população mais se identificava com os "vilões" de filmes e novelas...o "mocinho" era sempre visto como um chato; o policial correto era o "bobo", pois o "abusivo" que por violência e tortura atingia seus objetivos era bem mais interessante...

Hoje é quase ofensivo o uso de expressões como "dever social", "responsabilidade com o próximo", "solidariedade"...

A escassez no uso e na fé desses termos mina qualquer esperança de vida ética a longo prazo. E de desenvolvimento sustentável, em qualquer área do Estado. Liberdade e Dever são faces da mesma moeda chamada ser humano.

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