quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Era do Gelo e Filosofia

Por vezes, imaginamos que a filosofia deve ser encontrada em grossos e empoeirados volumes de bibliotecas. Ou que seria inacessível ao ser humano comum, pois se discutiriam coisas como "essência", "ser-em-situação", "contingência", etc. Algo para entendidos, ou pessoas que estariam à margem de um conhecimento prático. Quase lunáticos. É dizer: estudá-la corresponderia a um mero diletantismo sem utilidade.

Sinto que aos poucos há uma superação disso. De modo sutil, muitos filmes, especialmente para crianças, estão inserindo questionamentos que me deixam surpreendido. Por óbvio, não se mencionam autores e suas teorias, mas o conteúdo se encontra enunciado por personagens que, ao olhar despercebido, seriam do agrado de crianças interessadas apenas em diversão. Uma dessas gratas surpresas me ocorreu ao assistir ao filme Era do Gelo 3.

Sem contar o enredo, e já contando, o grupo crescente de amigos animais corre ao subterrâneo de seu mundo (des)conhecido de modo a resgatar um deles que resolveu constituir sua própria família de dinossauros, sendo ele mesmo uma espécie de preguiça pré-histórica. Após uma séria de encontros e desencontros, eles são ajudados por outro animal do subterrâneo, de modo "Buck", se não me engano, que expressa uma quase insanidade por haver passado muito tempo distante de seus iguais. Ele mantém uma relação estranho com um grande dinossauro, "Rudy", que o cegou durante uma perseguição. E com quem é travada uma luta por sobrevivência. Às portas do mundo menos desconhecido, digamos, os heróis da história chamam Buck para acompanhá-los e aumentar o "bando". Esse ponto em especial me surpreendeu. A resposta normal a ser esperada num mundo sem indagações maiores seria um "sim" efusivo e um final feliz, com a superação de todas as dores padecidas. Porém, ele diz: "E como ficará Rudy"? Quer dizer: como vai sobreviver o dinossauro que o cegou de um olho e do qual ele precisa lutar dia a dia para sobreviver?


Isso é de uma densidade pouco comum no cinema contemporâneo. Adulto ou infantil. Trata-se do reconhecimento de que o que somos, representamos, para nós e outros, e nossa própria consciência pessoal é composta necessariamente de componentes não racionais. Além disso, há pessoas que imaginam chegar a um dia em que todos os seus problemas seriam resolvidos. E que as adversidades que passamos em nossas vidas nos atingem porque somos maus, desobedecemos regras ou padrões morais, que nos retiraram do "Paraíso Perdido", como lembrava John Milton. E muitas vezes procuramos no céu e na terra motivos para explicar o porquê, a razão de sermos tão infelizes... e ficamos horas e horas dando nós em nossa mente em busca de uma resposta a isso.

Esse filme, aparentemente, mas certamente não apenas infantil, traz um dos grandes dilemas da humanidade traduzido em poucas palavras: nós nos reconhecemos nas lutas, quedas e naquilo que aparenta maior complexidade e dificuldade. E por vezes o que mais detestamos nos obstáculos é a perspectiva de nos arrancar de uma inércia que pode estar a nos rodear e sufocar. Em certas horas, vemos que a decadência e a derrota podem se afigurar estranhamente prazerosas para algumas pessoas, pois trariam um "basta" à dor de continuarmos lutando quando a dor não parece ter fim.

Mark Twain certa vez disse: "A única maneira de manter a saúde é comer o que não se quer, beber o que não se gosta e fazer o que se preferiria não fazer.". Robert Luis Stevenson disse: "Qualquer um pode carregar seu fardo, embora pesado, até o anoitecer. Qualquer um pode fazer seu trabalho, embora árduo, por um dia. Qualquer um pode viver mansamente, pacientemente, amistosamente, até que o sol se ponha. E isso é o que realmente a vida requer."

Algumas vezes, ouço de amigos que desejam casa para serem felizes. Não deixo de sentir uma ponta de tristeza com isso. Por que? Porque se traz a idéia de que o casamento só estaria "normal" quando nunca houvesse discórdias, desentendimentos, divergência de opinião. E quando eles surgissem, nada justificaria o desforço de processar tais fatos e ver o que há de positivo neles. Pois bem. Não digo que uma vida de atritos constantes seja desejável. Mas, em qualquer realização humana há de se compreender que a dor ou o obstáculo são convites para crescermos em direção a nós mesmos e a Deus. E tais coisas nos tornam maiores inclusive para nós mesmos. A humildade perante nossa condição humana nos traz uma paz inominável.

Fico feliz que um animalzinho de desenho animado haja trazido essa discussão a crianças, e principalmente adultos.

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