Projeto de lei - Migração partidária - Legislatura -
Transferência de recursos - Horário eleitoral (Transcrições)
MS 32033 MC/DF*
Relator: Min. Gilmar Mendes
DECISÃO: Trata-se de mandado de segurança preventivo, com
pedido de medida liminar, impetrado pelo Exmo. Sr. Senador **, em que se aduz a
violação do devido processo legislativo quanto à tramitação do PL nº
4.470/2012, o qual estabeleceria “que a migração partidária que ocorrer
durante a legislatura, não importará na transferência
dos recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão”.
Aponta-se como autoridade coatora tanto (1) a Câmara dos
Deputados – por já ter procedido à votação, à aprovação e ao envio do Projeto
de Lei nº 4.470/2012, supostamente viciado, ao plenário do Senado Federal, para
posterior deliberação, como (2) o Exmo. Sr. Presidente do Senado Federal, tendo
em vista que poderá vir a incluir, a qualquer momento, o referido projeto de
lei em pauta de votação.
O impetrante alega que, logo após o julgamento da ADI 4.430
(Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, ata de julgamento publicada em 9.8.2012), que
dispôs expressamente sobre o tema, houve a apresentação do referido projeto de
lei (de autoria do Deputado ** – PMDB/SP), com disposições que colidiriam com
os termos da mencionada decisão desta Corte acerca da adequada interpretação de
dispositivos constitucionais e legais.
Afirma, ainda, que, após ficar sem tramitação desde meados de
2012, o projeto de lei em questão passou a tramitar no ano de 2013, com
aprovação rápida de adoção de regime de urgência na Câmara dos Deputados, com o
nítido objetivo de prejudicar a formação de novas agremiações partidárias de
oposição (em fase avançada de criação, a saber: partido “Rede” e partido
“Solidariedade”), bem como a fusão de agremiações partidárias de oposição (PPS
e PMN): “fusão ao final aprovada pelas agremiações em congresso ocorrido no
último dia 17/04, quarta-feira”.
Assevera que se trata de uma manobra arbitrária, casuística e
inconstitucional da maioria parlamentar para obstaculizar a criação de novas
agremiações partidárias antes das eleições gerais de 2014, por meio de
utilização inadequada do processo legislativo como forma de sufocamento da
legítima mobilização das minorias parlamentares que intentariam formar novos
partidos políticos (já em estado avançado e com notoriedade nacional).
Alega que, ao se permitir a migração de parlamentares para novos
partidos criados, sem que com isso ocorra a transferência proporcional dos
recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na
televisão, haveria, de fato, uma verdadeira barreira ou desestímulo à criação
de novas agremiações políticas, em evidente frustração da norma constitucional
(art. 17, caput e §3º, CF/88).
Assevera, ainda, que a proposição do referido projeto de lei é
diametralmente oposta às diretrizes definidas na decisão tomada por esta Corte
no recente julgamento da ADI 4.430, o que pode ser constatado por simples
cotejo analítico.
Em síntese, afirma que a plausibilidade do seu direito líquido e
certo consiste na demonstração do abuso de poder legislativo, o que se
verificaria a partir dos seguintes aspectos: (1) tramitação de projeto de lei
casuisticamente forjado para prejudicar destinatários certos e definidos na
presente legislatura; (2) esvaziamento do direito fundamental à livre criação
de novos partidos e do pluralismo político, nos termos em que definido pelo STF
na decisão proferida na ADI 4430; (3) esmagamento e sufocamento de novos
movimentos políticos; (4) quebra do princípio da igualdade entre partidos, ainda
que permitida certa gradação de tratamento diferenciado; (5) discriminação
indevida pela criação de parlamentares de primeira e de segunda categorias; (6)
excepcionalidade do caso.
Dessa forma, o impetrante afirma ser essencial a impetração do
presente writ para defender seu direito líquido e certo de “não se
submeter à votação de proposta legislativa que, além de claramente ofensiva à
Constituição da República, foi casuística, abusiva e ilicitamente forjada com o
espúrio propósito de atingir, especificamente, pela via da lei, determinados
movimentos políticos, que se pretende esvaziar.”
Ademais, o perigo da demora se evidenciaria pela iminente
possibilidade de o projeto de lei vir a ser apresentado para votação no Senado
Federal, onde já foi recebido e tramita como PLC 14/2013. Nesse sentido, ainda
destaca: “mais do que isso, por volta das 20h de hoje [23.04.2013], foi lido
pela Mesa e encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça, havendo fundado
receio – considerado o ritmo de tramitação, que é próprio de maiorias
opressoras – de que venha a ser votado amanhã, 24/04, quarta-feira”.
Requer o deferimento da medida liminar para “que seja sustada
a tramitação do PL 4.470/2012, preservando-se o direito líquido e certo do
impetrante em não ter que aturar, como verdadeiro co-partícipe, na discussão e
votação de proposição evidentemente casuística, abusiva, utilizada com o claro
e desvirtuado propósito de discriminar e perseguir grupos políticos
minoritários perfeitamente individualizáveis, e plurimamente inconstitucional,
consoante já o disse o Supremo Tribunal Federal, há poucos meses atrás, nos
autos da ADI 4.430” .
No mérito, pede a concessão, “em definitivo, da ordem
mandamental, confirmando-se a liminar anteriormente deferida, para que referido
projeto de lei seja definitivamente arquivado, considerando-se que sua mera
tramitação, casuística e abusiva, além de se qualificar como causa de sensível
perturbação institucional, ofende de morte os postulados básicos, centrais e
fundantes da ordem constitucional, tais como o plurapartidarismo, a igualdade
entre agremiações partidárias, o direito à livre criação de partidos, elementos
sem os quais resta substancialmente comprometida a própria sobrevivência de
nosso sistema democrático.”
Decido.
I - O CABIMENTO E OS
LIMITES DO MANDADO DE SEGURANÇA PARA O CONTROLE DO DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO
Preliminarmente, destaco que a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal admite o controle de constitucionalidade prévio dos atos
legislativos, não obstante o seu caráter político, “sempre que os corpos
legislativos ultrapassem os limites delineados pela Constituição ou exerçam as
suas atribuições institucionais com ofensa a direitos públicos subjetivos
impregnados de qualificação constitucional e titularizados, ou não, por membros
do Congresso Nacional” (MS 24.849, Pleno, Rel. Celso de Mello, DJ
29.9.2006). O Tribunal reconhece, ainda, a legitimidade ativa dos parlamentares
para provocar esse controle por meio da impetração do mandado de segurança (MS
24.356/DF, rel. Carlos Velloso, Pleno, DJ 12.09.2003).
É também firme o posicionamento desta Corte no sentido do
cabimento de mandado de segurança para “coibir atos praticados no processo
de aprovação de leis e emendas constitucionais que não se compatibilizam com o
processo legislativo constitucional” (MS 24.642, Rel. Min. Carlos Velloso,
DJ de 18.6.2004; MS 20.452/DF, Rel. Min. Aldir Passarinho, RTJ, 116 (1)/47; MS
21.642/DF, Rel. Min. Celso de Mello, RDA, 191/200; MS 24.645/DF, Rel. Min.
Celso de Mello, DJ de 15.9.2003; MS 24.593/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de
8.8.2003; MS 24.576/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 12.9.2003; MS 24.356/ DF,
Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 12.9.2003.).
Se é certo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
reconhece a possibilidade de avançar na análise da constitucionalidade da
administração ou organização interna das Casas Legislativas, também é
verdade que isso somente tem sido admitido em situações excepcionais, em
que há flagrante desrespeito ao devido processo legislativo ou aos direitos e
garantias fundamentais.
Com o reconhecimento do princípio da supremacia da Constituição
como corolário do Estado Constitucional e, consequentemente, com a ampliação do
controle judicial de constitucionalidade, consagrou-se a ideia de que nenhum
assunto, quando suscitado à luz da Constituição, poderá estar previamente
excluído da apreciação judicial.
Nesse sentido, afirma José Elaeres Teixeira, em estudo
específico sobre o tema:
“Assim, ainda que uma questão tenha conteúdo
político, desde que apresentada ao Judiciário na forma de um que deva ser
decidido em contraste com o texto constitucional, torna-se uma questão
jurídica. Como juiz das suas atribuições e das atribuições dos demais Poderes,
o Supremo Tribunal Federal está habilitado a se pronunciar sobre todo ato,
ainda que político, praticado no exercício de uma competência constitucional”. (Teixeira, José Elaeres Marques. A doutrina das questões
políticas no Supremo Tribunal Federal. Porto
Alegre: Fabris Editor, 2005, p. 229).
De toda forma, não é o caso de se perquirir a fundo, ao menos
neste juízo prévio, sobre a amplitude e a complexidade relacionadas ao debate
acerca da doutrina das questões políticas, que parece remontar, nesta Corte,
ao famoso e polêmico julgamento do HC nº 300, impetrado por Rui Barbosa em 18
de abril de 1891.
Por ora, o necessário a consignar é que, mesmo alternando
momentos de maior e menor ativismo judicial, o Supremo Tribunal Federal, ao
longo de sua história, tem entendido que a discricionariedade das medidas
políticas não impede o seu controle judicial, desde que haja violação a
direitos assegurados pela Constituição. De todo modo, devem-se verificar, caso
a caso, os aspectos fáticos e jurídicos de cada demanda.
Mantendo essa postura, o Supremo Tribunal Federal, nos últimos
tempos, tem atuado ativamente no tocante ao controle judicial de questões
políticas quando há violação à Constituição Federal. Os diversos casos trazidos
recentemente ao Tribunal acerca de atos das Comissões Parlamentares de
Inquérito corroboram essa afirmação.
No julgamento do MS nº 23.452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, por
exemplo, deixou o Tribunal assentado o seguinte entendimento:
“Os atos das Comissões Parlamentares de
Inquérito são passíveis de controle jurisdicional, sempre que, de seu eventual
exercício abusivo, derivarem injustas lesões ao regime das liberdades públicas
e à integridade dos direitos e garantias individuais” (MS 23.452/RJ, Relator Celso de Mello, DJ
12.5.2000).
Tal juízo, entretanto, não pode vir desacompanhado de
reflexão crítica acurada. A doutrina tradicional da insindicabilidade das
questões interna corporis sempre esteve firmada na ideia de que as Casas
Legislativas, ao aprovarem os seus regimentos, estariam a disciplinar tão
somente questões internas. Por isso, a violação às normas regimentais deveria
como tal ser considerada. (Zagrebelsky, Gustavo. La giustizia costituzionale.
Bologna, Mulino, 1979, p. 36)
Muito embora minoritária hoje, não se pode negar que essa
postura contempla uma preocupação de ordem substancial: evitar que a declaração
de invalidade de ato legislativo marcado por vícios menos graves, ou
adotado em procedimento meramente irregular, mas que tenha adesão de ampla
maioria parlamentar, seja levada a efeito de forma corriqueira e, por vezes,
traduza interferência indevida de uma função de poder sobre outra.
(Zagrebelsky, Gustavo. La giustizia costituzionale. Bologna, Mulino,
1979, p. 37.)
Zagrebelsky afirma, por outro lado, que, se as normas constitucionais
fizerem referência expressa a outras disposições normativas, a violação
constitucional pode advir da afronta a essas outras normas, as quais, muito
embora não sejam formalmente constitucionais, vinculam os atos e procedimentos
legislativos, constituindo-se normas constitucionais interpostas. (Zagrebelsky,
Gustavo. La giustizia costituzionale. Bologna, Mulino, 1979, p.40-41)
Na verdade, o órgão jurisdicional competente deve examinar a
regularidade do processo legislativo, sempre tendo em vista a constatação de
eventual afronta à Constituição (Canotilho, J.J. Gomes. Direito
Constitucional, apud Mendes, Gilmar. Controle de Constitucionalidade:
aspectos jurídicos e políticos. Saraiva, 1990, p. 35-36), mormente, aos
direitos fundamentais.
O caso dos autos remete a uma questão que envolve tanto a
interpretação de dispositivos constitucionais, quanto de dispositivos legais e
regimentais do Congresso Nacional.
Em casos como este, por vezes se cuida de uma utilização
especial do mandado de segurança, não exatamente para assegurar direito líquido
e certo de parlamentar, mas para resolver peculiar conflito de atribuições ou
“conflito entre órgãos”.
Assim, costuma-se afirmar que, nas situações de alegada violação
a premissas de validade do processo legislativo, mostra-se cabível o mandado de
segurança para resguardar a regularidade jurídico-constitucional do processo
político de deliberação e aprovação de leis.
De toda sorte, o fato é que, na maioria dos casos, o mandado de
segurança será utilizado não como simples mecanismo de proteção de direitos
fundamentais, mas de prerrogativas e atribuições institucionais e funcionais
da pessoa jurídica de direito público, assumindo feição de instrumento
processual apto a solucionar conflitos entre órgãos públicos, Poderes ou entre
entes federativos diversos.
Ao mesmo tempo, em razão de não ter o mandado de segurança um
espectro de apreciação e de eficácia decisória tão abrangente, quando comparado
ao que comumente a jurisdição constitucional faz uso por meio do controle
concentrado de constitucionalidade, é necessário um maior rigor de apreciação e
um cuidado redobrado para o seu cabimento e, inclusive, para o deferimento de
medidas liminares em casos como o presente, em que se vislumbra um elevado
potencial de tensão para a harmonia e independência dos Poderes. A feição do
presente caso, inclusive, parece exigir maior reflexão acerca dos limites do
uso do mandado de segurança pelo parlamentar, para evitar o uso abusivo que
pode ser exercido por outras vias processuais.
É que, tradicionalmente, o mandado de segurança, deve se limitar
a resguardar direito específico, líquido e certo, que não implique extrapolar
os efeitos próprios de um writ – a exemplo da vedação de se utilizá-lo
para impugnar lei ou ato normativo em tese (Súmula 266 do STF).
Nesse sentido, desde que presentes os requisitos legais, a
concessão de liminar deve ater-se ao necessário e suficiente para resguardar o
direito vindicado, no sentido de preservá-lo até a resolução de mérito da
demanda, evitando determinações que extrapolem o pedido ou seus contornos.
O exercício de autocontenção, enquanto prerrogativa básica do
Estado Constitucional, por se configurar em dimensão do Princípio Republicano,
comunica-se com o Intérprete da Constituição. E, como ensina Peter Häberle,
este intérprete há de verificar o resultado de sua interpretação conforme a
reserva da consistência (Vorbehalt der Bewährung), levando em conta os
fundamentos presentes e assumindo a possibilidade de mudanças:
“Colocado no
tempo, o processo de interpretação constitucional é infinito, o
constitucionalista é apenas um mediador (Zwischenträger). O resultado de sua interpretação está
submetido à reserva da consistência (Vorbehalt
der Bewährung), devendo ela, no
caso singular, mostrar-se adequada e apta a fornecer justificativas diversas e
variadas, ou, ainda, submeter-se a mudanças mediante alternativas racionais” (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A
Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a
Interpretação Pluralista e ‘Procedimental’ da Constituição”. Porto Alegre:
Sergio Antônio Fabris Editor, 1997. P. 42.).
Esse modo de operar busca evitar que os integrantes do Poder
Judiciário venham a definir explicitamente as pautas do Poder Legislativo, o
que acabaria por obstar o exercício da função típica deste. Ao se extrapolarem
os limites da autocontenção, necessários ao sistema de checks and balances,
vê-se impedida a devida realização do projeto constitucional.
Aliás, como já tive a oportunidade de ressaltar em outra
oportunidade (MS 24.138, de minha relatoria, Pleno, DJ 14.03.2003), trata- se
de aplicação que poderia ser considerada como uma variante da “doutrina
brasileira do mandado de segurança”. Essa doutrina permite a utilização desse
peculiar instrumento de defesa de direitos subjetivos públicos na solução de
eventual conflito de atribuições ou de conflito entre órgãos, a Organstreitgkeit
do direito constitucional alemão (Lei Fundamental, art. 93, I, nº 1). Na
expressão de Klaus Schlaich, trata-se de um processo destinado a dirimir
controvérsias entre órgãos constitucionais a propósito de suas competências
(cf., a propósito, Gilmar Ferreira Mendes, Controle de Constitucionalidade:
aspectos jurídicos e políticos, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 149).
No que diz respeito à admissibilidade do controle preventivo de
atos normativos, o mandado de segurança opera como autêntico processo de
solução de conflitos entre órgãos de perfil constitucional.
A orientação aqui perfilhada (quanto ao cabimento do presente writ)
está em consonância com o entendimento desta Corte, que, desde o julgamento do
MS 20.257-DF (Rel. p/o acórdão o Ministro Moreira Alves, Pleno, DJ 27.02.1981),
já acolhia a tese do cabimento do mandado de segurança preventivo nas hipóteses
em que a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da
emenda. Nesse caso, a inconstitucionalidade já existiria antes mesmo de o
projeto ou de a proposta se transformar ou em lei ou em emenda constitucional,
porque o processamento, por si só, já desrespeitaria, frontalmente, a própria
Constituição.
No presente caso, tendo em vista a peculiaridade de a tramitação
aparentemente ocorrer em sentido diametralmente oposto à diretriz traçada
recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4430, entendo
que o presente mandado de segurança deve ser conhecido, conforme orientação já
assentada por esta Corte em casos semelhantes.
II – ANÁLISE DOS
REQUISITOS DE CONCESSÃO DO PEDIDO LIMINAR
Estão presentes os pressupostos para a concessão da medida
liminar.
A fumaça do bom direito surge ao se apreciar a jurisprudência
constitucional desta Corte. O mandado de segurança em exame pretende obstar a
tramitação do Projeto de Lei 4.470/2012, que já foi aprovado pela Câmara dos
Deputados e, atualmente, encontra-se no Senado Federal, em fase de iminente
votação. Alega o impetrante que o referido projeto de lei tem por objetivo, nos
termos de sua própria ementa, determinar que “a migração partidária que
ocorrer durante a legislatura não importará na transferência dos recursos do
fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão”.
A intenção do projeto é impedir que os parlamentares, ao criarem
novas legendas, levem consigo as suas respectivas “cotas de
representatividade”, ou seja, carreguem para o novo partido o que equivaleria
às suas participações em termos de valores do fundo partidário e de tempo de
propaganda eleitoral no horário gratuito de rádio e de televisão distribuído
aos partidos.
Importante notar que não é a primeira vez que o tema é colocado
perante esta Corte. No julgamento das ADIs 1351 e 1354, Rel. Min. Marco
Aurélio, Plenário, DJ 30.3.2007, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade,
declarou a inconstitucionalidade de lei que visava a restringir o funcionamento
parlamentar, por meio da adoção de uma cláusula de desempenho, bem como da redução
do tempo de propaganda partidária gratuita e da participação no rateio do Fundo
Partidário. O acórdão das referidas ações diretas de inconstitucionalidade,
julgadas em conjunto, restou assim ementado:
“PARTIDO POLÍTICO – FUNCIONAMENTO PARLAMENTAR
– PROPAGANDA PARTIDÁRIA GRATUITA – FUNDO PARTIDÁRIO. Surge conflitante com a
Constituição Federal lei que, em face da gradação de votos obtidos por partido
político, afasta o funcionamento parlamentar e reduz, substancialmente, o tempo
de propaganda partidária gratuita e a participação no rateio do Fundo
Partidário.
NORMATIZAÇÃO –
INCONSTITUCIONALIDADE – VÁCUO. Ante a declaração de inconstitucionalidade de
leis, incumbe atentar para a inconveniência do vácuo normativo, projetando-se,
no tempo, a vigência de preceito transitório, isso visando a aguardar nova
atuação das Casas do Congresso Nacional”.
Nesse julgamento, mencionei, em obiter dictum, que o
sistema político brasileiro passava por uma crise e que a intensa migração de
parlamentares de uma legenda para outra estava a merecer maior atenção, uma vez
que poderia significar afronta à vontade do eleitor. Na oportunidade, durante
os debates, afirmei:
“E acredito que nós aqui estamos inclusive
desafiados a repensar esse modelo a partir da própria jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal – e vou um pouco além da questão posta neste voto, neste caso:
talvez estejamos desafiados a pensar inclusive sobre a conseqüência da mudança
de legenda por aqueles que obtiveram o mandato no sistema proporcional. É um
segredo de carochinha que todos dependem da legenda para obter o mandato. E
depois começa esse festival de trocas já anunciadas. Uma clara violação à
vontade do eleitor”.
Em momento posterior, o Supremo Tribunal afirmou que a
fidelidade partidária decorria do sistema eleitoral adotado, bem como de outras
regras e princípios constitucionais (confiram-se os Mandados de Segurança 26.602,
26.603 e 26.604, de relatoria dos ministros Eros Grau, Celso de Mello e Cármen
Lúcia, respectivamente).
No julgamento dos referidos mandados de segurança, salientei que
a fidelidade partidária condicionava o processo democrático, ao impor normas de
preservação dos vínculos políticos e ideológicos entre eleitores, eleitos e
partidos. Nesse sentido, o “transfuguismo” partidário excessivo que se
estava a vivenciar contaminava todo o processo democrático, gerando
repercussões negativas sobre o funcionamento parlamentar dos partidos.
Ao assentar a imperiosidade da fidelidade partidária, a Corte
delegou ao Tribunal Superior Eleitoral a edição de Resolução que regulamentasse
todos os aspectos decorrentes de sua decisão. Verifique-se trecho da ementa do
julgado do MS 26.602, Rel. Min. Eros Grau:
“(...) O abandono
de legenda enseja a extinção do mandato do parlamentar, ressalvadas situações
específicas, tais como mudanças na ideologia do partido ou perseguições
políticas, a serem definidas e apreciadas caso a caso pelo Tribunal Superior
Eleitoral”.
A proibição do “troca-troca” partidário não representou, por
óbvio, a asfixia da liberdade de criação de partidos políticos, garantida pelo
art. 17 da Constituição Federal, tampouco a vedação do acesso de novos partidos
aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda eleitoral no rádio e
na televisão, in verbis:
“Art. 17. É livre a criação, fusão,
incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania
nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais
da pessoa humanas e observados os seguintes preceitos:
(...)
§ 3º Os partidos
políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio
e à televisão, na forma da lei”.
Justamente nesse contexto, o STF, ao interpretar os dispositivos
transcritos, em Sessão Plenária realizada em 29.6.2012, julgou a ADI 4.430, de
relatoria do Ministro Dias Toffoli, e concedeu interpretação conforme à
Constituição ao inciso II do § 2º do art. 47 da Lei 9.504/97, para assegurar
aos partidos novos, criados após a realização das últimas eleições gerais para
a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois terços do
tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão,
considerada a representação dos deputados federais que migrarem diretamente dos
partidos pelos quais foram eleitos para a nova legenda no momento de sua
criação.
Essa interpretação foi observada pelo sistema político nas
últimas eleições municipais e, portanto, abarcou os atores políticos aos quais
foi aplicada até o momento. O PLC 14/2013 perece afrontar diretamente a
interpretação constitucional veiculada pelo Supremo Tribunal Federal no
julgamento da ADI 4.430, Rel. Min. Dias Toffoli, a qual resultou de gradual
evolução da jurisprudência da Corte, conforme demonstrado.
A aprovação do projeto de lei em exame significará, assim, o
tratamento desigual de parlamentares e partidos políticos em uma mesma
legislatura. Essa interferência seria ofensiva à lealdade da concorrência
democrática, afigurando-se casuística e direcionada a atores políticos
específicos.
O perigo na demora revela-se na singular celeridade da
tramitação do PL em questão, principalmente considerando o impacto da
proposição legislativa nas mobilizações políticas voltadas à criação e fusão de
novos partidos. É necessário que as regras de regência do próximo pleito sejam
claras e aplicadas de modo isonômico e uniforme a todos os envolvidos.
Por essa razão, leis casuísticas são altamente questionáveis. Em
outras oportunidades manifestei-me sobre o tema:
“Outra limitação implícita que há de ser
observada diz respeito à proibição de leis restritivas, de conteúdo casuístico
ou discriminatório. Em outros termos, as restrições aos direitos individuais
devem ser estabelecidas por leis que atendam aos requisitos da generalidade e
da abstração, evitando, assim, tanto a violação do princípio da igualdade
material quanto a possibilidade de que, por meio de leis individuais e
concretas, o legislador acabe por editar autênticos atos administrativos (Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, Grundrechte — Staatsrecht
II, cit., p. 70.)
Sobre o significado de princípio, vale registrar o magistério de
Canotilho:
‘As razões materiais
desta proibição sintetizam-se da seguinte forma: (a) as leis particulares
(individuais e concretas), de natureza restritiva, violam o princípio material
da igualdade, discriminando, de forma arbitrária, quanto à imposição de
encargos para uns cidadãos em relação aos outros; (b) as leis individuais e
concretas restritivas de direitos, liberdades e garantias representam a
manipulação da forma da lei pelos órgãos legislativos ao praticarem um ato
administrativo individual e concreto sob as vestes legais (os autores discutem
a existência, neste caso, de abuso de poder legislativo e violação do princípio
da separação dos poderes; (c) as leis individuais e concretas não contêm uma
normatização dos pressupostos da limitação, expressa de forma previsível e
calculável e, por isso, não garantem aos cidadãos nem a proteção da confiança
nem alternativas de ação e racionalidade de atuação’. (Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 614.)
Diferentemente das
ordens constitucionais alemã e portuguesa, a Constituição brasileira não
contempla expressamente a proibição de lei casuística no seu texto.
Isso não
significa, todavia, que o princípio da proibição da lei restritiva de caráter
casuístico não tenha aplicação entre nós. Como amplamente admitido na doutrina,
tal princípio deriva do postulado material da igualdade, que veda o tratamento
discriminatório ou arbitrário, seja para prejudicar, seja para favorecer. (Cf.,
sobre o assunto, Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 614-615; Herzog, in Maunz-Dürig, dentre outros, Grundgestz, cit., Kommentar zu art. 19, I, n. 9).
Resta evidente,
assim, que a elaboração de normas de caráter casuístico afronta, de plano, o
princípio da isonomia.
É de observar,
outrossim, que tal proibição traduz uma exigência do Estado de Direito
democrático, que se não compatibiliza com a prática de atos discriminatórios ou
arbitrários. Nesse sentido, é preciso o magistério de Pontes de Miranda nos
seus comentários ao art. 153, § 2º, da Constituição de 1967/69:
‘Nos Estados
contemporâneos não democratizados, a segurança de que as regras jurídicas
emanam de certa fonte, com a observância de pressupostos formais, muito serve à
liberdade, sem, contudo, bastar-lhe. Não é aqui o lugar para mostrarmos como se
obtém tal asseguração completa da liberdade, pela convergência de três caminhos
humanos (democracia, liberdade, igualdade). (...) O art. 153, § 2º, contém em
si um dos exemplos: se o Estado é democrático, a proposição, que se acha no
art. 153, § 2º, é como se dissera ‘Ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa, senão em virtude de regra jurídica emanada dos
representantes do povo (democracia, arts. 27-59), formalmente igual para todos
(igualdade, art. 153, § 1º)’. Pontes de
Miranda, Comentários
à Constituição de 1967/69, cit., t. 5,
p. 2-3).
Se não há dúvida
de que, também entre nós, revela-se inadmissível a adoção de leis singulares,
individuais ou pessoais com objetivo de restringir direitos, cumpre explicitar
as características dessas leis. Segundo Canotilho (Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 614), lei individual restritiva inconstitucional é toda lei que:
— imponha
restrições aos direitos, liberdades e garantias de uma pessoa ou de várias
pessoas determinadas;
— imponha
restrições a uma pessoa ou a um círculo de pessoas que, embora não determinadas,
podem ser determináveis por intermédio da conformação intrínseca da lei e tendo
em conta o momento de sua entrada em vigor.
O notável
publicista português acentua que o critério fundamental para a identificação de
uma lei individual restritiva não é a sua formulação ou o seu enunciado
linguístico, mas o seu conteúdo e respectivos efeitos. Daí reconhecer a
possibilidade de leis individuais camufladas, isto é, leis que, formalmente,
contêm uma normação geral e abstrata, mas que, materialmente, segundo o
conteúdo e efeitos, dirigem-se a um círculo determinado ou determinável de
pessoas. (Canotilho, Direito constitucional, cit., p. 614.)
Não parece ser
outra a orientação da doutrina tedesca. A técnica de formulação da lei não é
decisiva para a identificação da lei restritiva individual ou casuística.
Decisiva é a consequência fática (tatsächliche Wirkung) da lei no momento de sua entrada em vigor. (Herzog, in Maunz-Dürig, dentre outros, Grundgesetz, cit., Kommentar
zu
art. 19, I, n. 36)
A decisão do
Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade da Lei dos Partidos
Políticos parece compreender-se também no contexto dessa proibição, na medida
em que se afirma ali que se cuida, propriamente, de repudiar uma decisão que
limita a participação dos partidos no pleito eleitoral, mas de se ter como
inaceitável a adoção de critérios assentados no passado — em fatos já
verificados e consumados — para definir essa participação futura”. (ADI 958, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de
25-8-1995, p. 26021.)
Observo que não se está a impedir a livre conformação
legislativa. O que se pretende resguardar é a manifestação do Pleno do Tribunal
acerca de sua fiel interpretação da Constituição e o tratamento isonômico, em
uma mesma legislatura, de todos os atores e partidos políticos interessados,
sob pena de violação aos princípios democrático, do pluripartidarismo e da
liberdade de criação de legendas.
É importante ressaltar, a despeito de eu ter ficado vencido na
hipótese, que o Supremo já considerou inconstitucional a tentativa de o
legislador, por lei ordinária, superar interpretação constitucional fixada
previamente pela Corte, como ocorrido na ADI 2.797, Rel. Min. Sepúlveda
Pertence, DJ 19.12.2006.
Desse modo, afigura-se prudente suspender a tramitação do PLC
14/2013, até a deliberação final do Plenário da Corte sobre o mérito da
presente ação mandamental.
Ante o exposto, considerando (i) a excepcionalidade do presente
caso, confirmada pela extrema velocidade de tramitação do mencionado projeto de
lei – em detrimento da adequada reflexão e ponderação que devem nortear tamanha
modificação na organização política nacional; (ii) a aparente tentativa
casuística de alterar as regras para criação de partidos na corrente
legislatura, em prejuízo de minorias políticas e, por conseguinte, da própria
democracia; e (iii) a contradição entre a proposição em questão e o teor da
Constituição Federal de 1988 e da decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal na ADI 4430; vislumbro possível violação do direito público subjetivo
do parlamentar de não se submeter a processo legislativo inconstitucional e defiro
o pedido de liminar para suspender a tramitação do PLC 14/2013, até o
julgamento de mérito do presente mandado de segurança.
Comunique-se com urgência ao Presidente do Senado Federal.
Solicitem-se informações.
Publique-se. Int..
Brasília, 9 de abril de 2013.
Ministro Gilmar Mendes
Relator
*decisão publicada no DJe de 29.4.2013.
** nomes suprimidos pelo
Informativo
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