Saiu hoje no jornal Diário de Notícias, de Portugal, uma reportagem sobre "o que vale a pena ir ao Tribunal"... A reportagem vai no final da mensagem.
Os links são os seguintes:
Chamou-me a atenção ao imaginar quanta coisa absolutamente diminuta fica entupindo os escaninhos do MP no Brasil. Estou com um inquérito em que três menores subtrairam mercadorias de um pequeno comércio. Um deles entregou uma carteira de cigarros (só uma!) para uma pessoa. Resultado: o cidadão está sendo processo pelo art. 180, "caput", CP (receptação).
Na Reportagem de Lisboa, a justiça passou 04 anos para decidir que um casaco infecto e podre (palavras da reportagem) deveria ser restituído ao dono após um furto.
É um dos mais recentes casos insólitos a ser decidido no Tribunal da Relação do Porto e envolve o destino a dar a um casaco velho e podre. Um casaco de bombazine "em estado de infecta desagregação" foi apreendido a um homem que, a 28 de Outubro de 2009, foi condenado pelo Tribunal de Amarante pelo crime de condução ilegal. A peça tinha sido furtada a 22 de Março de 2006 e acabou por ser apreendida a 5 de Abril do mesmo ano. O Ministério Público (MP) decidiu pelo arquivamento do crime de furto a 15 de Junho de 2009 e, a 18 de Janeiro do ano transacto, o dito casaco foi levado para tribunal para ser identificado pelo legítimo dono. Como o dono da vestimenta tinha falecido há três anos, foi decidida pelo juiz a destruição da vestimenta devido ao "estado de infecta desagregação". No entanto, o MP considerou que o casaco deveria ser restituído a quem de direito e recorreu, alegando, inclusive, que o juiz tinha violado "o disposto nos artigos 109.º do CP e o 186.º do CPP". A conclusão do processo tardou, mas acabou finalmente por chegar: a 29 de Setembro último, quatro anos após a apreensão do "complicado" casaco de bombazine, o Tribunal da Relação do Porto decidiu, por unanimidade, dar o recurso como improcedente...
Se a legislação brasileira, e uma parte dos tribunais, não dá maior abertura ao MP para arquivar tantas coisas insignificante que nos chegam diariamente via inquérito policial, a meu ver cabe ao próprio MP começar a fazê-lo. E ser mais seletivo com o valioso tempo que nos é dado. Arquivando coisas como essa. Creio que uma denúncia por ausência de licitação, segundo o art. 89 da Lei 8.666/93, tem relevância institucional muito maior do que 10 por furto de um porco ou uma galinha...
Eu concordo com o Secretário Geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público de Portugal, quando deu uma declaração nesse sentido:
O Ministério Público também precisava de ser aliviado de tantos inquéritos...
Para se ter uma ideia, entram por ano no Ministério Público 500 mil novos inquéritos. Destes, entre 35 a 40 por cento são arquivados, sobretudo as queixas contra desconhecidos. Mesmo assim ficam muitos para apreciar, se tivermos em conta que temos 300 a 400 magistrados adstritos aos inquéritos. Estamos a falar de crimes que se podiam evitar apenas com maior prevenção.
REPORTAGENS:
4 PERGUNTAS A...
Resolver por via dos processos sumários e sumaríssimos
Hoje Rui Cardoso, secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
Como é que se resolve o problema da avalanche de processos comuns que invadem os tribunais?
Para estes crimes temos de resolver o problema por via dos processos sumários [cujo julgamento deve decorrer 30 dias após o crime e só para crimes com pena inferior a cinco anos] sumaríssimos e abreviados. Ou então recorrendo à suspensão provisória do processo, em que se suspendem os autos em troca de o arguido prestar trabalho comunitário ou dar outra compensação à vítima. Aliás, devia permitir-se que mais processos pudessem ser suspensos provisoriamente. Mas a lei exige que a suspensão ocorra apenas quanto a arguidos sem condenação anterior por um crime da mesma natureza.
Podiam-se utilizar mais esses processos especiais em Portugal?
Sem dúvida, devíamos tentar aplicar essas formas de processo especial para crimes menores. Nos países nórdicos até já chegaram à conclusão que certos factos não avançam sequer para processo, ou seja, é crime, mas não é relevante.
O vosso sindicato propôs no início do ano o julgamento de todos os criminosos detidos em flagrante delito mas não foi uma proposta consensual, pois não?
Nós temos vindo a fazer várias propostas no sentido de se utilizar mais os processos sumários e sumaríssimos mas não têm tido um acolhimento consensual no Parlamento. Alguns partidos têm acolhido as propostas em algumas partes, casos do Bloco de Esquerda ou CDS-PP, mas não houve consenso. O que sabemos é que se não esgotarmos as formas de processos especiais dentro de dez anos ainda estaremos a discutir isto.
O Ministério Público também precisava de ser aliviado de tantos inquéritos...
Para se ter uma ideia, entram por ano no Ministério Público 500 mil novos inquéritos. Destes, entre 35 a 40 por cento são arquivados, sobretudo as queixas contra desconhecidos. Mesmo assim ficam muitos para apreciar, se tivermos em conta que temos 300 a 400 magistrados adstritos aos inquéritos. Estamos a falar de crimes que se podiam evitar apenas com maior prevenção.
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OPINIÃOVer o que é "digno" de ir a tribunalHoje O presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, não sabe precisar quanto é que estes casos poderão custar ao Estado, "até porque cada caso é um caso". Um processo comum pode custar centenas de euros. Basta as partes interporem recursos para o custo subir. Mesmo sem precisar números, Fernando Jorge diz ser óbvio que os atrasos na justiça têm um "custo elevado". Na sua opinião, devia haver "uma reforma legislativa que permitisse repensar o que é digno de ser tratado em tribunal" e ainda agilizar os processos. Amêndoas e 'whisky': 2 anos (Matosinhos)
O advogado de Matosinhos, Filipe Melo, representou também o jovem Bruno Silva, 18 anos, julgado em Fevereiro deste ano por um colectivo por causa do furto de um pacote de amêndoas e de uma garrafa de whiskey no Minipreço. Da data dos factos, 15 de Março de 2008, à sentença, a 22 de Março deste ano, passaram dois anos. Bruno foi absolvido. A 19 de Setembro de 200, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente um recurso do Ministério Público (MP). O MP queria avançar com um processo comum por furto simples, de natureza semipública, contra um jovem de 18 anos que levou cinco chocolates Milka, no valor de 4,85 euros, de um supermercado, a 6 de Março de 2007. O Tribunal da Relação do Porto deu razão à juíza de pequena instância criminal que considerou que a "coisa furtada é de valor diminuto" e "destinada à satisfação imediata" do jovem arguido. E que, sendo assim, o furto simples assumia a natureza de crime particular. Os desembargadores consideraram ainda, nos fundamentos do acórdão, que este "atribulado processo" teve uma "tramitação" que "contraria todas as orientações da política criminal orientadas para a pequena criminalidade". Leia-se, orientações de rapidez processual. Casaco ainda mais podre (Porto) É um dos mais recentes casos insólitos a ser decidido no Tribunal da Relação do Porto e envolve o destino a dar a um casaco velho e podre. Um casaco de bombazine "em estado de infecta desagregação" foi apreendido a um homem que, a 28 de Outubro de 2009, foi condenado pelo Tribunal de Amarante pelo crime de condução ilegal. A peça tinha sido furtada a 22 de Março de 2006 e acabou por ser apreendida a 5 de Abril do mesmo ano. O Ministério Público (MP) decidiu pelo arquivamento do crime de furto a 15 de Junho de 2009 e, a 18 de Janeiro do ano transacto, o dito casaco foi levado para tribunal para ser identificado pelo legítimo dono. Como o dono da vestimenta tinha falecido há três anos, foi decidida pelo juiz a destruição da vestimenta devido ao "estado de infecta desagregação". No entanto, o MP considerou que o casaco deveria ser restituído a quem de direito e recorreu, alegando, inclusive, que o juiz tinha violado "o disposto nos artigos 109.º do CP e o 186.º do CPP". A conclusão do processo tardou, mas acabou finalmente por chegar: a 29 de Setembro último, quatro anos após a apreensão do "complicado" casaco de bombazine, o Tribunal da Relação do Porto decidiu, por unanimidade, dar o recurso como improcedente... Creme de beleza furtado (Porto) Mas casos insólitos é coisa que não parece faltar nos tribunais portugueses. Invadem os tribunais de pequena instância e de primeira instância, mas também entopem os tribunais superiores, devido aos recursos. Um dos casos que acabou por se tornar mediático é o inesquecível furto de um creme de beleza num supermercado da cadeia Lidl. A 21 de Junho de 2007, o Tribunal Criminal do Bolhão, no Porto, absolveu uma septuagenária do furto de um creme de beleza, avaliado em 3,99 euros, do supermercado Lidl. Os factos ocorreram a 18 de Outubro de 2005. Para além do insólito, um mistério: já depois de Maria Martins ter sido levada a julgamento, o próprio supermercado entregou, a pedido do tribunal, um talão comprovativo de que, afinal, o creme tinha sido pago. Na sentença, o tribunal não deixaria de mencionar a "coincidência estranha" de o talão referir somente a compra do creme naquele dia às 11.54, quando a senhora tinha procedido a outras compras, registadas pela caixa. Em 2006, também foi julgado no Tribunal da Relação do Porto o furto de uma embalagem de queijo fatiado, no valor de 1,29 euros. Nesse mesmo ano, juízes da Relação mandaram para julgamento uma mulher que levara quatro queijos de vaca do supermercado sem os pagar. Galinhas... absolvidas (Coimbra)
Em 2003, um casal de Vilamar, Cantanhede (Coimbra), queixou-se que os animais dos vizinhos não os deixavam descansar durante a noite. Após duas sessões de julgamento, com audição de testemunhas e uma ida à capoeira, o juiz considerou que as galinhas poderiam ser absolvidas, deixando claro que o canto dos galos provocaria apenas "algum desconforto ou incómodo de reduzida intensidade". O casal - também possuidor de instalações próprias para criar frangos e galinhas - ainda tentou recorrer. O Tribunal da Relação de Coimbra negou o recurso à sentença do Tribunal de Cantanhede com uma fundamentação eloquente: "Como dizia nas suas lições o prof. Antunes Varela, todos temos de pagar algum preço por andarmos vivos." Outro caso caricato foi, em Abril de 2009, no Tribunal da Maia, o julgamento de um homem acusado de furtar duas galinhas. O julgamento terminou um minuto após ter começado com a desistência de queixa do lesado e a anuência do arguido. O próprio lesado, apesar da convicção de que teria sido o arguido a furtar os animais em Outubro de 2007, considerou que "não valia a pena perder tempo". Manuel Costa, 61 anos, anunciou que iria deixar cair a acusação, rotulando a situação como "uma palhaçada".
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PROCESSOSBagatelas penais entopem a justiçapor RUTE COELHO e JOANA DE BELÉMHoje São casos que se arrastam nos tribunais por questões absurdas: quatro anos para decidir o destino a dar a um casaco velho; dois anos até se absolver um funcionário processado pelo hipermercado Continente por ter usado dois sabonetes; dois anos para decidir se um furto de caixas de camarão deve ser julgado em processo abreviado. Ou a perda de tempo com um caso de galináceos. Vozes públicas do sector apelam a mais celeridade para estes casos menores. O destino a dar a um casaco velho foi uma questão que se arrastou na justiça por quatro anos. É um caso anedótico que foi muito comentado há duas semanas. Mas há muitos processos simples a entupir os tribunais, em torno de furtos de chocolates ou de sabonetes. Uma das causas é que "os hipermercados avançam sempre com as queixas", como explica fonte judicial ao DN. Mas outras causas podem ser aventadas. Dezenas de "bagatelas penais", ou seja, crimes com moldura inferior a cinco anos de prisão, avançam em processo comum quando podiam ser resolvidos em processos sumários, mais céleres, como defende o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (ver relacionado). O sistema dos recursos também vem complicar processos que, em vez de estarem resolvidos em duas sessões, acabam por demorar um a dois anos. O advogado Filipe Melo, de Matosinhos, conta ao DN "o caso mais absurdo" da sua carreira. "Representei um cliente que é funcionário do hipermercado Continente e também é sindicalista. Um dia ele pegou em dois sabonetes do Continente e colocou-os na casa de banho dos funcionários, para substituir o líquido para as mãos. Resultado: foi processado por furto pela empresa", contou o advogado. O funcionário do hipermercado Continente foi absolvido pelo Tribunal de Matosinhos, mas a empresa recorreu para a Relação do Porto. A empresa abriu ainda um processo disciplinar contra o funcionário com vista ao despedimento. O Tribunal do Trabalho deu razão ao funcionário, a empresa recorreu, mas voltou a perder e teve de readmitir o homem. "Perdeu-se ano e meio nesta acção, de Outubro de 2008 a Março de 2009, e o meu cliente ficou esgotado", contou Filipe Melo.
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