Processo
REsp 1445472
Relator(a)
Ministro JORGE MUSSI
Data da Publicação
06/04/2015
Decisão
RECURSO ESPECIAL Nº 1.445.472 - RS (2014/0074484-0) RELATOR : MINISTRO JORGE MUSSI RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL RECORRIDO : ANTÔNIO ILTON SALDANHA SILVEIRA ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL DECISÃO Trata-se de recurso especial interposto com fulcro no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que negou provimento ao apelo ministerial, mantendo o entendimento de primeiro grau que reconheceu a absorção do crime do art. 309 do Código Brasileiro de Trânsito pelo de embriaguez ao volante, previsto no art. 306 do mesmo diploma legal e pelo qual restou o recorrido condenado. O aresto restou assim ementado: DIRIGIR VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ. CRIME E AUTORIA COMPROVADOS. CONDENAÇÃO MANTIDA. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE (art. 306) E DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO (art. 309). ABSORÇÃO DO SEGUNDO PELO PRIMEIRO DELITO. I - Como afirmou a Julgadora, condenando o recorrente: "Além da constatação material da embriaguez houve também a prova testemunhal produzida em juízo, que confirmou estar o réu com visíveis sinais de embriaguez. Fabiano, policial militar, narrou que... Chegando ao local perceberam que o réu estava alcoolizado, sendo que foi feito teste do bafômetro tendo sido constatado o estado de alcoolemia... Valéria... narrou que percebeu que o veiculo que o réu estava dirigindo, no sentido contrário, iria colidir com o do seu namorado, pois fazia "zigue-zague" na pista. Alegou que o réu, após a colisão, desceu cambaleando do automóvel... Rauphi, informou que o réu teria colidido contra o seu automóvel e que quando este parou e desceu foi possível perceber que estava embriagado..." II- Tendo em vista que as normas dos arts. 306 e 309 do Código de Trânsito protegem o mesmo bem jurídico (incolumidade física de outrem), é inviável a condenação por ambos os crimes. Tem-se que admitir a absorção da figura criminal menor pela maior. Na hipótese, o delito descrito no artigo 306 é mais abrangente e mais gravoso, devendo ser o único imposto ao condenado, absorvendo a falta de habilitação para dirigir veículos. DECISÃO: Apelos defensivo e ministerial desprovidos. Unânime. (fls. 281) Sustenta o Parquet estadual divergência jurisprudencial e negativa de vigência aos arts. 69, caput, do Código Penal e 309 do Código de Trânsito Brasileiro, além de afronta ao art. 306, também do CTB, aduzindo a inaplicabilidade do princípio da consunção na hipótese, uma vez que as condutas analisadas não são o meio normal ou necessário para a preparação ou execução uma da outra. Requer, desse modo, o provimento do apelo para que o recorrido seja condenado pelos crimes de condução de veículo automotor sob o efeito de álcool e de direção de veículo sem habilitação, em concurso material, com o redimensionamento da pena e demais consectários. Contrarrazões apresentadas (fls. 333 a 338). Admitido o recurso (fls. 340 a 343), os autos ascenderam ao STJ. A douta Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se no sentido do provimento da irresignação (fls. 356 a 358). É o relatório. Encontrando-se satisfeitos os requisitos de admissibilidade, passa-se à análise do mérito recursal. Na espécie, assim se manifestou o Tribunal recorrido quanto à matéria suscitada no presente inconformismo, litteris: Logo, estando a conduta perfeitamente adequada ao tipo penal denunciado e não havendo qualquer causa excludente da ilicitude ou dirimente da culpabilidade, a condenação nas sanções do artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro, é medida que se impõe. Por outro lado, a mesma conclusão não se chega no que diz respeito ao delito de dirigir veículo automotor sem a devida autorização, já que além de constituir infração administrativa devidamente regulamentada pelo artigo 162, do Código de Trânsito Brasileiro - o qual estabelece penalidade de multa (três vezes) e apreensão do veículo - a conduta fica absorvida na hipótese do motorista encontrar-se, também, embriagado (artigo 306, do CTB). (fls. 284) Verifica-se, pois, que a Corte recorrida, utilizando-se do princípio da consunção, considerou absorvido o delito relativo à direção sem habilitação pelo de direção sob o efeito de álcool, condenando o recorrido apenas quanto a esse último. Contudo, constata-se que o Tribunal a quo aplicou equivocadamente o referido princípio no caso dos autos. Com efeito, é sabido que o princípio da consunção se volta à resolução de um conflito aparente de normas, sempre que a questão não puder ser resolvida pelo princípio da especialidade. Vale dizer, a sua aplicação pressupõe que, havendo o agente incorrido em duas condutas típicas, um possa ser entendida como necessária ou meio para a execução da outra. No particular, é oportuno transcrever o entendimento do jurista CEZAR ROBERTO BITENCOURT, in verbis: "Pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um crime constitui meio necessário ou fase normal de preparação ou execução de outro crime. Em termos bem esquemáticos, há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta. Na relação consuntiva, os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie, mas de minus e plus, de continente e conteúdo, de todo e parte, de inteiro e fração. [...] A norma consuntiva exclui a aplicação da norma consunta, por abranger o delito definido por esta. Há consunção, quando o crime-meio é realizado como uma fase ou etapa do crime-fim, onde vai esgotar seu potencial ofensivo, sendo, por isso, a punição somente da conduta criminosa final do agente." (in Tratado de Direito Penal, volume 1: parte geral - 13ª ed. - São Paulo: Saraiva, 2008 - p. 201-202) Por sua vez, ROGERIO GRECO aponta que o critério da consunção pode ser adotado em duas situações, litteris: a) quando um crime é meio necessário ou normal fase de preparação ou de execução de outro crime; b) nos casos de antefato e pós-fato impuníveis. (in Curso de Direito Penal - 14ª ed. - Rio de Janeiro: Impetus, 2012 - p. 30) Dessa forma, conclui-se que na prática de dois crimes, para que um deles seja absorvido pelo outro, condenando-se o agente somente pela pena cominada ao delito principal, se faz necessária a existência de conexão entre ambos, ou seja, que um deles tenha sido praticado apenas como meio ou preparatório para a prática de outro, mais grave. Contudo, não é o que se verifica ter ocorrido na hipótese dos autos. Veja-se que os delitos previstos nos artigos 306 e 309 do CTB (ambos crimes de perigo) não tem qualquer relação entre si na sua prática, não havendo que se falar em absorção. Ou seja, sobre o fato de o recorrido haver dirigido veículo automotor, em via pública, com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool e sem a devida autorização do órgão de trânsito, colocando em risco a vida e patrimônio de terceiros, recaem duas normas incriminadoras, não tendo sido necessária a prática do primeiro crime para que ocorresse a consumação do segundo, e vice-versa. Assim, ambos foram consumados ao mesmo tempo, e sem qualquer relação de causalidade. Isso porque o recorrido poderia estar dirigindo com a carteira de habilitação e embriagado - situação em que estaria incurso somente nas sanções do art. 306 -, ou poderia estar dirigindo sem estar sob influência de álcool e sem a devida habilitação - quando se lhe aplicariam as penas do art. 309. Corrobora esse entendimento a decisão singular proferida pelo Exmo. Sr. Ministro Nilson Naves, no bojo do HC 157031-SP (DJ de 14-10-2010), ao dizer que "Sobre a tese do crime único, entende o Superior Tribunal que a consunção se dá quando uma das condutas é meio necessário ou preparação natural para a realização do delito subsequente". Ressalta-se, ainda, o quanto restou assentado nesse Sodalício sobre o assunto, por meio das ementas dos seguintes julgados: PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES DE EXTORSÃO MEDIANTE SEQUESTRO COM RESULTADO MORTE E OCULTAÇÃO DE CADÁVER. REGIME INTEGRAL FECHADO. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, § 1º, DA LEI N. 8.072/90. PROGRESSIVIDADE DO REGIME PRISIONAL. LEI N. 11.464/2007. INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA ABSORÇÃO. LEGITIMIDADE DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO NA INTERPOSIÇÃO DE RECURSOS. FIXAÇÃO DA PENA-BASE PRÓXIMA AO MÁXIMO LEGAL. DEFICIÊNCIA RECURSAL. SÚMULA 284/STF. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO IMPROVIDO E RECURSO DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO NÃO CONHECIDO. [...] 2. Consoante entendimento do Superior Tribunal de Justiça, de acordo com o princípio da consunção, haverá a relação de absorção quando uma das condutas típicas for meio necessário ou fase normal de preparação ou execução do delito de alcance mais amplo (HC 97.872/SP, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 21/09/2009). [...] 6. Recurso especial do Ministério Público improvido e recurso especial do assistente de acusação não conhecido. (REsp 717.172/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 16/12/2014, DJe 03/02/2015) HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO-CABIMENTO. RESSALVA DO ENTENDIMENTO PESSOAL DA RELATORA. DIREITO PENAL. ROUBO MAJORADO PELO EMPREGO DE ARMA. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA. CONDENAÇÃO NA FORMA DO ART. 69 DO CÓDIGO PENAL. PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO QUANTO AO CRIME DE PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA, EM VIRTUDE DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. NÃO INCIDÊNCIA NO CASO EM TELA. PRECEDENTES. ORDEM DE HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDA. [...] 3. Para a aplicação do princípio da consunção, pressupõe-se a existência de ilícitos penais chamados de consuntos, que funcionam apenas como estágio de preparação ou de execução, ou como condutas, anteriores ou posteriores de outro delito mais grave, nos termos do brocardo lex consumens derogat legi consumptae. 4. A conduta de portar arma ilegalmente não pode ser absorvida pelo crime de roubo, quando restar evidenciada a existência de crimes autônomos, sem nexo de dependência ou subordinação. [...] 6. Ordem de habeas corpus não conhecida. (HC 236.846/MG, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 18/02/2014, DJe 05/03/2014) Dessa forma, conclui-se que o julgado a quo, ao aplicar o princípio da consunção no tocante a crimes autônomos e sem relação de causa-efeito, dissentiu da jurisprudência do STJ sobre o tema. Por todo o exposto, com fundamento no art. 557, § 1º-A, do Código de Processo Civil, c/c art. 3º do Código Penal, dá-se provimento ao recurso especial para, afastado a aplicação do princípio da consunção à espécie, determinar o retorno dos autos ao Tribunal a quo, de sorte que prossiga no julgamento do recurso de apelação ministerial. Publique-se. Intime-se. Brasília (DF), 26 de março de 2015. MINISTRO JORGE MUSSI Relator